LGBTs em quarentena: histórias de solidão e esperança na Itália

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O barulho do mundo é do que mais sinto falta agora. Nos últimos dias, o silêncio aqui em Milão é surreal. Tudo fica meio abafado, como se nos convidasse a sussurrar nas poucas vezes em que precisamos interagir com os outros.

O silêncio só é quebrado pela intensa sirene das ambulâncias, um som do qual muita gente vai se lembrar.

Tudo isso faz nossos antepassados se recordarem da guerra, dizem eles. Só que agora é a vez deles de morrer na batalha, muito mais do que os jovens. A nossa memória coletiva está em risco.

As trincheiras de hoje são nossos hospitais. Nossos médicos e enfermeiros são os soldados e os heróis. Já o papel de todo o resto é o da responsabilidade: quanto mais formos responsáveis, maior será nosso direito de reivindicar nossa liberdade de volta; quanto menos formos responsáveis, mais eles poderão impor medidas drásticas. Foi por isso que, no mês passado, saí do meu apartamento de 40m², sem nenhuma vista para a rua, apenas duas vezes. 

Eu estava desesperado para atravessar a cortina de silêncio e as sirenes estridentes para me sentir menos sozinho e tentar descobrir o que estava acontecendo com colegas LGBT+ aqui na Itália. E isso me motivou a pedir aos membros da All Out para compartilharem suas histórias. 

Muitas mensagens que recebi falavam de esperança e solidariedade, mas também de medo, solidão e maneiras criativas que as pessoas encontraram para lidar com esses sentimentos.

"Olá, meu nome é Mara e moro perto de Bergamo. Só com essa frase você já deve imaginar o quanto a Covid-19 afetou minha vida."

Bergamo é o triste cerne onde se concentrou o surto mais mortal do coronavírus na Itália.

"A maior ansiedade não é ter que ficar em casa, mas ficar em uma casa que não amo, em uma cidade que não amo, com a sirene das ambulâncias gritando praticamente na porta. O pior de tudo é ter que dividir a casa com meus pais, nem tanto pela minha mãe, mas por ser quase insuportável ter que me sujeitar ao meu pai. Um pai que não me tem nenhum respeito e que faz questão de demonstrar isso sempre, toda vez que surge uma oportunidade."

Manlio, de Nápoles, é médico

"Sou médico, moro um pouco afastado e corro muito pouco risco no momento, embora eu pegue muito mais máscaras caseiras da minha mãe [...] do que do departamento de saúde local. Pelo menos chego ao trabalho em tempo recorde, pois geralmente perco mais de duas horas do meu dia só no trânsito."

Francesco, de Alessandria, também é médico:

Citação em italiano que significa: Parece que entrei num furacão, trombando em tudo e em todos.

"Parece que entrei num furacão, trombando em tudo e em todos."

Andrea, voluntário da All Out aqui na Itália, diz:

"No meu caso, eu sabia desde o início que, para enfrentar a quarentena da melhor maneira possível, eu teria que me concentrar o máximo possível no meu microcosmo: minhas paixões, minha saúde mental, as leituras, o videogame e os estudos, porque se eu não conseguisse achar um bom equilíbrio, não conseguiria ajudar as pessoas à minha volta.

Alberto, presidente de uma associação LGBTI+ em Reggio Emilia, menciona como as pessoas trans lutam para encontrar os medicamentos de que precisam:  

"Percebemos imediatamente como as consultas para renovação dos planos de tratamento pararam de ser marcadas. A única solução é fazer contatos e descobrir a quem podemos recorrer para obter ajuda. Não é fácil."

Mas o trabalho mais importante que eles fazem é com refugiados e pessoas que buscam asilo.

"Nós fornecemos arroz, enlatados, frutas e remédios que não precisam de receita para quem está desprotegido e já vive no limite. Isso é possível graças ao compromisso de alguns membros da nossa associação... Mas daqui a pouco teremos que inventar outras formas de apoio. [...] Um dos rapazes que ajudamos foi notificado pela polícia porque estava fora de casa 'sem necessidade'. Ele mora nas ruas, o que esperavam que ele fizesse? Estamos tentando encontrar um lugar para ele, mas não é fácil. Eu mesmo hospedei dois imigrantes nigerianos gays há algum tempo. Sem mim, eles estariam na rua. É claro que a coabitação ficou mais intensa agora, bem como a preocupação econômica com o futuro (sou freelancer e perdi 90% do meu trabalho em fevereiro...); mas qual é o sentido de manter um quarto de hóspedes vazio se existe alguém que corre o risco de ficar desabrigado?"

Erica, de Monza, perdeu o emprego: 

Citação em italiano que significa: Trabalhei na mesma empresa nos últimos dois anos, e como meu contrato venceria em março, eles resolveram me deixar em casa.

"Trabalhei na mesma empresa nos últimos dois anos, e como meu contrato venceria em março, eles resolveram me deixar em casa."

Quanto a mim, eu como. Preciso de comida caseira, e cozinhar me relaxa. Sinto falta de ir ao supermercado sabendo que, se esquecer alguma coisa, posso voltar rapidinho. Mas tenho a sorte de ser cliente de um mercado online que entrega as compras uma vez por semana. A gente paga uma mensalidade e tem uma quota do quanto pode gastar por semana. Tudo bem que não escolhemos as frutas e verduras que recebemos, mas ainda é melhor do que passar três horas numa fila.

Além de comer, eu trabalho, e penso no que está acontecendo com a democracia, com as pessoas que não podem ficar em casa porque não têm casa. Será que acabou o mundo que eu conheci? E aconteceu assim, tão rápido? Busco respostas em artigos, livros e reuniões através do Zoom. Até que dou risada (e são tantas risadas, tensas e artificiais) e como de novo.  

"'Você tem que ser forte e reagir'. É o que todos me dizem", escreve S., de Cagliari. "Mas eu acordo todos os dias com vontade de chorar. As lágrimas escorrem antes das meninas levantarem do meu maldito sofá onde dormiram. 

Então eu reajo. Tento respirar, minha cabeça lateja, meu estômago dói, é o estresse. Mas não vou desistir. Quero sonhar e dançar. Você não vai roubar minha vida, vírus. Você não vai levar quem eu amo. E eu choro. Até me dar conta de que estou rindo. Primeiro eu grito, depois eu xingo. Mas não estou com raiva de ninguém, estou? 

Tento arrumar a casa e não consigo. Tento cozinhar, mas para dizer a verdade eu só quero vomitar. Não sei o que dizer. Quero esquecer isso. Quero que tudo volte ao normal. Mas nunca paro de lutar... 

Costumo dormir durante o dia para não sentir tanta dor, ou coloco o fone de ouvido para inundar a cabeça de música, mas tenho que esperar. Espero o momento de levar a cachorrinha para passear e aproveitar para respirar um pouco. Quando chega a hora, quase nunca consigo sair – as pernas travam, as mãos tremem, a barriga dói. 

Existe o mar lá fora para me fazer companhia; também existe a Margot, a cachorrinha que não me larga um segundo sequer, e a gatinha Emma, que mia demais e ninguém sabe o porquê. Vamos, hoje está meio nublado, mas o sol vai voltar daqui a pouco, então me agarro a todos os objetos que me transmitem algo sobre mim e Silla, sobre nós antes de hoje, sobre nosso amor do qual sequer cogito desistir..."

Não consigo dormir bem, e o TikTok se apodera facilmente das minhas noites. Não tenho medo, me sinto seguro no meu apartamento e gosto de estar sozinho – ou seja, estou lidando muito bem com o momento. Mas saber que o mundo lá fora continua em movimento me deu muito mais conforto. 

Mara é como eu: 

"Nunca fui uma pessoa social, que gosta de festas – pelo contrário, sempre preferi ficar sozinha ou com pouquíssimas pessoas da minha confiança. Mas isso não significa que eu goste da quarentena: estar sozinha é bom, mas de vez em quando eu quero sair e tomar um café na cidade onde cresci, o que não posso fazer agora. Até a fila de dez minutos nos correios era divertida, mas eles também estão fechados..."

Comer, cozinhar, lavar e limpar são as únicas coisas que faço offline. Minha vida profissional, política, social, familiar e amorosa só acontece online

Meu pai me lembrou no WhatsApp que ele quer ser cremado, e comemorei meu segundo aniversário com meu namorado conversando por mensagens de texto no Telegram – qualquer ligação ou chamada por vídeo é proibida quando o namorado está em quarentena com uma família homofóbica.

Ele também compartilhou a história dele:

"Sou forçado a viver 24 horas por dia, 7 dias por semana, em um ambiente religioso e conservador que me priva da minha identidade e me obriga a fingir ser alguém não sou. Além disso, viver longe do meu namorado, o amor da minha vida, e não poder vê-lo, não poder dar a ele todo o meu amor, todos os beijos e abraços deste mundo, não ajudam muito. Sorte termos a internet, onde posso me expressar com liberdade, onde posso ser eu mesmo, pelo menos virtualmente, e onde posso conversar com meu namorado todos os dias. Espero que isso acabe logo para retomarmos nosso cotidiano e apreciar a liberdade." 

Citação em italiano que significa: Espero que isso acabe logo para retomarmos nosso cotidiano e apreciar a liberdade.

Faz mais de um mês que não toco em nenhum ser humano, e isso nunca me aconteceu. Eu estava de mãos dadas com meu namorado quando tudo começou. Bem, quando a quarentena terminar, eu gostaria de começar de novo a partir dali.

Clique aqui para ler, assistir, e ouvir todas as histórias que coletamos. Todas estão apenas em italiano.

Tradução de Rogério Bettoni

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